Saramago Visionário. As Vendas Que Nos Impedem de Enxergar o Óbvio

set 15, 2025 | Blog, Neurociência

Saramago Visionário. As Vendas Que Nos Impedem de Enxergar o Óbvio

A visão é um dos sentidos mais preciosos do ser humano, permitindo-nos apreender o mundo em suas múltiplas nuances. No entanto, o que acontece quando essa visão, antes nítida, se torna turva, não por um mal físico, mas por uma cegueira metafórica que nos impede de enxergar a realidade? José Saramago, em sua obra-prima “Ensaio sobre a Cegueira”, explorou essa questão de forma visceral, apresentando um cenário distópico onde a humanidade é acometida por uma epidemia de cegueira branca. Mais do que uma simples alegoria, a obra do Nobel português serve como um espelho para a cegueira atual nas pessoas, uma cegueira que se manifesta de diversas formas em nossa sociedade contemporânea.

A Cegueira Branca de Saramago e a Cegueira Social de Hoje

Saramago nos confronta com a brutalidade da condição humana quando desprovida de um sentido fundamental. A cegueira branca, que atinge a todos indiscriminadamente, não é apenas uma perda da visão física, mas a revelação de uma cegueira moral e ética preexistente. No romance, a sociedade se desintegra, revelando o egoísmo, a violência e a desumanização latentes. É nesse ponto que a ficção de Saramago se conecta de forma tão pungente com a nossa realidade.

Hoje, não somos atingidos por uma cegueira física em massa, mas por uma multiplicidade de “cegueiras brancas” que nos impedem de ver o próximo, de compreender as complexidades do mundo e de agir com empatia. A professora de sociologia Maria da Conceição Tavares, em diversas de suas análises sobre a desigualdade social no Brasil, apontou para a incapacidade de grande parte da população de “enxergar” a miséria e a injustiça que as cercam, um tipo de cegueira social que permite a perpetuação de estruturas de poder. Essa cegueira, muitas vezes, é construída por narrativas convenientes, bolhas de informação e a espetacularização da dor alheia que, paradoxalmente, nos torna insensíveis.

A Cegueira da Desinformação e o Eco da Ignorância

Uma das formas mais evidentes da cegueira atual é a que surge da desinformação. Em um mundo hiperconectado, onde a informação flui em ritmo vertiginoso, a capacidade de discernir o real do falso se tornou um desafio hercúleo. Notícias falsas, ou fake news, se propagam como um vírus, criando realidades paralelas e moldando percepções distorcidas. O estudo “Cegueira Voluntária e o Custo da Ignorância”, publicado pelo economista Peter Schuck na New York University Law Review, destaca como indivíduos e grupos podem optar por ignorar informações que contradizem suas crenças, mesmo que essas informações sejam fundamentadas em evidências.

Essa cegueira voluntária é um terreno fértil para a polarização política e social. Vemos famílias e amizades se desfazendo por conta de visões de mundo inconciliáveis, não porque as pessoas sejam inerentemente más, mas porque estão presas em suas próprias “bolhas” de informação, incapazes de ver a perspectiva do outro. Um exemplo prático disso é a persistência de movimentos antivacina, mesmo diante de um consenso científico esmagador. A cegueira para a ciência e para o bem comum tem consequências reais e tangíveis, como o ressurgimento de doenças já controladas.

A Cegueira para o Outro: O Egoísmo e a Individualização

Saramago nos mostra uma sociedade onde, diante do caos, a solidariedade é a primeira a ser abandonada. As pessoas cegas se veem presas em um ciclo de egoísmo e sobrevivência, onde cada um luta por si. Essa é uma imagem desconfortavelmente familiar em nossa sociedade moderna, marcada por um crescente individualismo. A socióloga Zygmunt Bauman, com o conceito de “modernidade líquida”, descreve uma era onde os laços sociais são fluidos e efêmeros, e as relações são cada vez mais instrumentalizadas.

A cegueira para o sofrimento do outro se manifesta de diversas formas: a indiferença diante da pobreza extrema, a naturalização da violência, a falta de empatia por aqueles que são diferentes de nós. Em grandes centros urbanos, é comum ver pessoas passarem por moradores de rua sem sequer um olhar, como se fossem invisíveis. Essa “cegueira seletiva” nos impede de reconhecer a humanidade em cada indivíduo, transformando-os em meros elementos da paisagem. Um estudo da Universidade de Harvard, conduzido pelo psicólogo Daniel Kahneman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, sobre a “cegueira à escolha” (choice blindness), demonstra como as pessoas são facilmente enganadas sobre suas próprias preferências e valores, o que pode se estender à percepção do outro.

A Cegueira para o Futuro: A Negação da Crise Climática

Outra forma alarmante de cegueira que assola a humanidade é a negação da crise climática. Apesar das evidências científicas avassaladoras, apresentadas por instituições como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), grande parte da população, e infelizmente muitos líderes políticos e empresariais, permanece cega para a urgência da situação. A elevação das temperaturas, os eventos climáticos extremos, a perda de biodiversidade – tudo isso é ignorado ou minimizado, como se o futuro não nos pertencesse.

Essa cegueira para o futuro é uma cegueira para as consequências de nossas próprias ações. É uma incapacidade de enxergar além do imediatismo e do lucro a curto prazo. A pesquisadora brasileira Dra. Bertha Becker, renomada geógrafa e especialista em Amazônia, em seus trabalhos sobre desenvolvimento e meio ambiente, sempre alertou para a cegueira das políticas extrativistas e o desmatamento, que comprometem não apenas o ecossistema local, mas o equilíbrio climático global. Essa cegueira coletiva não afeta apenas as gerações futuras, mas já impacta as populações mais vulneráveis do presente, que sofrem as consequências mais severas das mudanças climáticas.

A Cegueira da Superficialidade e a Busca por Conexão Autêntica

Em um mundo inundado por imagens e informações efêmeras, a superficialidade se tornou uma armadilha. Redes sociais, embora ofereçam a ilusão de conexão, muitas vezes nos empurram para uma cegueira em relação à profundidade das relações humanas e à complexidade dos problemas. Consumimos conteúdo de forma rápida e descartável, sem tempo para reflexão ou questionamento. A “Sociedade do Espetáculo”, conceito desenvolvido pelo filósofo Guy Debord, descreve um mundo onde a vida é mediada por imagens e a autenticidade é substituída pela representação.

Essa cegueira da superficialidade nos impede de estabelecer conexões verdadeiras e de enxergar a riqueza da experiência humana além das aparências. Estamos constantemente comparando nossas vidas com as “vidas perfeitas” apresentadas nas redes sociais, o que pode levar a um aumento da ansiedade e da depressão. A psicóloga Sherry Turkle, professora do MIT, em seu livro “Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other”, explora como a tecnologia, ao invés de nos conectar, muitas vezes nos isola e nos impede de desenvolver a capacidade de empatia e de conversas significativas.

Desvendando as Vendas: O Caminho para a Visão

Se Saramago nos apresenta um cenário de desespero, ele também oferece um vislumbre de esperança. No “Ensaio sobre a Cegueira”, é a mulher do médico, a única que mantém a visão física, quem guia o grupo de cegos para fora do isolamento e os ajuda a redescobrir a humanidade. Ela representa a capacidade de ver além do óbvio, de resistir à desumanização e de liderar com compaixão.

Em nossa sociedade, desvendar as vendas que nos cegam exige um esforço consciente e coletivo. Não é uma tarefa fácil, mas é essencial para a nossa sobrevivência e para a construção de um futuro mais justo e humano. Algumas ações fundamentais incluem:

  • Educação Crítica e Alfabetização Midiática: Desenvolver a capacidade de questionar as informações, de verificar fontes e de compreender os vieses presentes em diferentes narrativas é crucial para combater a cegueira da desinformação. O Programa de Educação para Mídia da UNESCO, por exemplo, promove iniciativas para capacitar indivíduos a se tornarem consumidores e produtores de mídia mais conscientes.
  • Empatia Ativa e Escuta Atenta: Sair de nossas bolhas de informação, buscar diferentes perspectivas e praticar a escuta ativa são passos fundamentais para combater a cegueira para o outro. Iniciativas como o projeto “Human Library”, onde pessoas se tornam “livros vivos” para compartilhar suas experiências, promovem o diálogo e a compreensão mútua.
  • Consciência Ambiental e Ação Sustentável: Informar-se sobre a crise climática, apoiar políticas de sustentabilidade e adotar práticas individuais que minimizem o impacto ambiental são passos essenciais para desvendar a cegueira para o futuro. A Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável oferece um roteiro global para essa transformação.
  • Valorização do Diálogo e da Reflexão: Em um mundo de superficialidade, é vital resgatar o valor do diálogo profundo, da reflexão e do pensamento crítico. Fomentar espaços para debates construtivos e incentivar a leitura de obras que desafiam nossas percepções, como a própria obra de Saramago, são importantes para combater a cegueira da superficialidade.
  • Apoio à Ciência e Pesquisa: Reconhecer a importância da pesquisa científica para a compreensão do mundo e para a busca de soluções é crucial. Investir em ciência e combater o negacionismo são formas de garantir que nossas decisões sejam baseadas em fatos e não em crenças infundadas.

Conclusão: Enxergando Além da Aparência

A cegueira atual nas pessoas, tão eloquentemente prefigurada na obra de José Saramago, é um fenômeno complexo e multifacetado. Não se trata de uma condição física, mas de uma falha em nossa capacidade de ver, de compreender e de agir com humanidade. No entanto, a ficção de Saramago não é apenas um alerta, mas também um chamado à esperança. A mulher do médico, com sua capacidade de ver, nos lembra que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, a visão da verdade, da compaixão e da solidariedade pode nos guiar para fora da escuridão.

Desvendar as vendas que nos cegam exige um esforço contínuo e coletivo. Requer coragem para questionar o que nos é apresentado, humildade para reconhecer nossas próprias limitações e empatia para nos conectar com o outro. Somente ao nos recusarmos a permanecer cegos, poderemos construir uma sociedade onde a luz da compreensão e da justiça prevaleça sobre as sombras da ignorância e da indiferença. Saramago nos deu os olhos para ver a nossa própria cegueira; cabe a nós agora abrir esses olhos e enxergar um caminho para a frente.

Fontes Científicas Nacionais e Internacionais Consultadas:

  1. Tavares, M. da C. (Várias obras e palestras sobre desenvolvimento e desigualdade social no Brasil).
  2. Schuck, P. H. (2007). “Voluntary Blindness and the Cost of Ignorance.” New York University Law Review, 82(2), 273-316.
  3. Bauman, Z. (2000). Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.
  4. Kahneman, D. (2011). Thinking, Fast and Slow. Farrar, Straus and Giroux. (Apesar de não focar exclusivamente em “choice blindness”, o trabalho de Kahneman sobre vieses cognitivos e a racionalidade limitada oferece bases para entender fenômenos como a “cegueira à escolha” em decisões sociais).
  5. IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). Relatórios de Avaliação (AR). (Disponíveis em: www.ipcc.ch).
  6. Becker, B. K. (Várias publicações e artigos sobre Amazônia, desenvolvimento e questões ambientais no Brasil).
  7. Debord, G. (1967). The Society of the Spectacle. (Tradução para o português: A Sociedade do Espetáculo).
  8. Turkle, S. (2011). Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. Basic Books.
  9. UNESCO. (Várias publicações e programas sobre Alfabetização Midiática e Informacional).

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